Uma Crônica emprestada da Dolores Coelho!


Ano de 2001.
Círio de Nossa Senhora da Conceição nas águas do rio Caraparu.

Vamos visualizar o mapa do Estado do Pará e ancorar na prainha do vilarejo de Caraparu, distrito do município de Santa Izabel, localizado a menos de uma hora de Belém, onde, a cada dia 8 de dezembro, há mais de 100 anos, acontece o Círio de Nossa Senhora da Conceição. Todas as imagens acumuladas ao longo de dezenas de círios em Belém, no asfalto, são incomparáveis com o que se vê e, principalmente, com o que se ouve no de Caraparu.
Em 2001, a convite dos amigos fotógrafos Elza Lima e Pedro Martinelli, eu os acompanhei no trabalho fotográfico do Círio fluvial de Caraparu. Sem ser fotógrafa, nem mesmo amadora, eu resolvi contribuir na empreitada providenciando um café da manhã, bem prático, a ser degustado no próprio carro a caminho da localidade. Partimos de Belém às 5 da manhã. Com os vidros do carro abertos, respirando o cheiro da manhã ainda molhado pela neblina da madrugada, tomamos um café quentinho com beiju torrado da feira de Batista Campos.  Elza, veterana no Caraparu, fez alguns relatos dos círios fluviais para os dois novatos, Pedro e eu.
Chegamos ao vilarejo e já encontramos, além de muitos romeiros, outros fotógrafos, todos na execução da primeira etapa do trabalho, negociando o preço do aluguel das canoas e dos serviços dos canoeiros. Elza, com desenvoltura e experiência, ficou à frente de tudo, examinando as  canoas, reclamando do tamanho dos remos, barganhando os valores pedidos. Tudo isso antes de surgir o Ribamar!

- Dona Elza!!! Eu, eu, eu tava esperando a senhora. Cadê o seu Luiz, rapá?
- Fale, Ribamar! Td bem contigo? O Luiz Braga não pode vir. Mandou um abraço pra ti.
 - É mesmo? Poxa! Aguarde aqui que eu e o meu primo Angelo vamos levar a senhora.
De cara, eu gostei do Ribamar. Muito vivo, ele deve ter lido a frase em neon piscando na minha testa: “Eu sou uma péssima nadadora!”. Ele foi logo informando que o nível do rio estava baixo pela falta de chuvas. Eu achei uma ótima notícia! Acomodados na canoa, sem coletes salva-vidas,  lá fomos nós, rio abaixo, durante duas horas, rumo à localidade de Cacoal, de onde, após a reza do terço na capelinha, partiria, formalmente, a procissão do Círio, fazendo o caminho de volta por mais duas horas. Eu, cheia de pavulagem, como uma destemida ribeirinha, de vez em quando, tocava as águas com as pontas dos dedos procurando estabelecer intimidade. À medida que deslizávamos pelo espelho de águas escuras do rio Caraparu, nas margens, a natureza ia apresentando cenários escandalosamente desordenados e exuberantes de barrancos, troncos submersos, mururés e de árvores de diversos tamanhos, interligadas pelas plantas aéreas, que, generosamente, em alguns trechos, brincavam de mulher rendeira com suas tramas vazadas pela tímida e preguiçosa luz do sol daquela hora. A neblina, ainda muito densa,  favorecia a lembrança de cenas de algum filme rodado lá para os lados dos rios do Vietnã. E os sons da mata? Ribamar foi identificando um a um, procurando imitar o canto dos pássaros. Uma volta, duas voltas, três voltas...eu parei de contar quantas voltas o rio fazia. Em cada uma delas, Ribamar tinha uma história para contar, uma sugestão de foto para fazer...
Quando paramos em Cacoal, a canoa com a imagem de Nossa Senhora da Conceição acabara de chegar acompanhada de velhos e jovens marinheiros em suas alvas roupas, contrastando com o verde da mata e o vermelho do barro. O mais velho dos marinheiros adultos já contava mais de 57 círios. As crianças vestidas de anjinhos, com asas de todos os tamanhos, seguravam um acessório nem um pouco celestial: um saquinho plástico com uma merenda e moedas para comprar um “chopp de frutas”.
Após o terço, as saudações e os cantos tradicionais, os primeiros fogos sinalizaram a hora de partir em procissão. Estávamos todos divididos em 15 canoas, aproximadamente. Uma canoa carregava a banda da Polícia Militar do Estado, sob a regência do sargento Galvão, com mais de 14  círios no currículo. Uma outra, era ocupada unicamente pelos fogueteiros. A cada volta do rio, eles faziam a festa com barulho e fumaça. Quanto mais fumaça, mais aplausos. Até então, o Ribamar só tinha remado, imitado pássaros, sugerido fotos para os dois fotógrafos e dito algumas piadas. Nada que chamasse a atenção. Eu, novata no Círio das águas do Caraparu, achando que o grande espetáculo encerrava-se com a visão da imagem da santa cortando a cortina de fumaça dos fogos, no túnel verde formado pela vegetação, nem imaginava o show de habilidade e de perícia a ser protagonizado pelo canoeiro Ribamar e pelo primo auxiliar Angelo. Orgulhoso na tarefa de conduzir os fotógrafos no Círio do rio Caraparu há anos, e, por conta dessa convivência ao longo do tempo, bastante palpiteiro, Ribamar superou-se em esforços para atender com precisão aos pedidos de Elza e de Pedro buscando uma melhor posição para as fotos. Para mim, confesso, toda aquela movimentação chegou perto dos preparativos de uma terrível batalha fluvial!
- Ribamar, mais rápido, Ribamar! Vamos parar naquela sombra ali.
- Qual,  dona Elza? Aquela? Não é melhor aquela outra?
- Não, Ribamar!!

- Tanto lugar bacana e vocês foram escolher logo essa sombrazinha....
- Ribamar, é a luz, Ribamar, é a luz!! Naquela outra, a sombra não é boa...
- Eu não tô dizendo nada, dona Elza. A senhora é que sabe a sombra que quer. Sombra mesmo, se a senhora queria, só dentro da igreja...
E, assim, cuidando também para a canoa não virar com os rompantes de Ribamar e as nossas risadas na sequência, seguíamos atravessando a fumaça dos fogos sob os aplausos dos romeiros nas canoas e de outros tantos às margens do rio.
- Ribamar, mais rápido, Ribamar! Vamos esperar a santa embaixo daquela árvore...
- Qual? Dona Elza, isso não é árvore, é tranqueira! Agora me deu medo: a senhora não sabe mais o que é uma árvore...
- Ribamar, para a canoa, Ribamar, para, para! Pedia o Pedro.
E o Ribamar acionava o freio do remo. Freio ou força espiritual, eu só sei que, de fato, a canoa parava! Pedro agradecia:
- Maravilha, Ribamar. Você foi o máximo. Essa foi “a chapa”!
Todas as vezes em que o Pedro movimentava-se, sugerindo ficar em pé na canoa para fazer “uma chapa”, eu me imaginava tocando o fundo do rio e sendo resgatada, delicadamente, com carinhos de mãe, por Nossa Senhora da Conceição pessoalmente!
Ribamar não resistia mais do que alguns minutos calado:
- Eu não quero dizer mais nada, dona Elza. Só mais uma coisa: se a gente ficar bem ali, vai dar pra fazer “muita” foto legal!
Elza concordava. Outras vezes, discordava.
Num dado momento em que passou ao nosso lado uma canoa bem rápida, eu comentei:
- Esses caras são bons, mesmo, Ribamar! Estão remando pra valer. E como estão suados!
- A senhora gostou, foi? Bom sou eu que vou passar deles. Aperta aí, Angelo!!
E passamos, mesmo!
Quando já estávamos num das voltas finais do rio, com mais gente às margens, acenando e aplaudindo a procissão, um senhor, em sunga de banho, fazendo o sinal da cruz e segurando um copo de cerveja, fez uma saudação para a nossa canoa:
- Ei, parente, tô aqui tomando banho e esperando a santa passar.
Ribamar nem piscou. Olhou para o senhor e respondeu:
- Tomando banho, né, parente? Só se for dentro do copo!
Foi muito difícil controlar as gargalhadas e os movimentos para a canoa não virar.    
Depois da última curva, sol esquentando, já avistando os banhistas, sensação de missão cumprida no ar, o restante do percurso foi só de fogos, de aplausos, de canoa encostando uma na outra, remos no ar, romeiros pulando na água.
Em terra, depois da chegada, agradecemos ao comandante Ribamar e, ele, abraçado à velha amiga, disparou:
- Dona Elza, tô muito feliz de ter feito mais um círio com a senhora. Se Deus quiser, ano que vem, de novo! Eu tava tão preocupado de pegar a senhora e o seu Luiz na minha canoa que eu nem dormi. Juro por Nossa Senhora! Fiquei a noite inteira, aqui na beira com uns colegas, tomando umas geladas para não perder a hora.
- Ribamar, tu estavas remando bêbado, Ribamar?? Eu te mato!!
- O que é isso, dona Elza? A senhora vai esquentar agora? Eu gosto tanto da senhora. Não foi tudo joia?? Não esquente!
Voltamos para Belém. Felizes da vida. Eles, os fotógrafos, cheios de imagens. Eu, com essa historinha a me fazer sorrir todas as vezes em que alguém fala no rio Carapuru e no Círio fluvial de Nossa Senhora da Conceição.


Foto de Elza Lima



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