Nosso Linguajar encantador!


Texto de Pasquale Cipro Neto(Gramático)


Estive em Belém, capital do Pará para proferir duas
conferências. Tudo ótimo, do pessoal que organizou o
evento às inúmeras pessoas que compareceram e assistiram
às palestras.

É claro que nessas ocasiões presto muita atenção no que
ouço. Nada de procurar erros, pelo amor de Deus! O que
me fascina é descobrir as particularidades da linguagem
de cada comunidade, de cada grupo social. E a linguagem dos paraenses - mais especificamente a dos belenenses -é particularmente interessante.

"Queres água?", perguntava educadamente uma das pessoas
 que participaram da equipe de apoio. O pronome "tu", da
 segunda pessoa do
 singular, é comum na fala dos
 habitantes de Belém. Com um detalhe: o verbo conjugado
 de acordo com o que prega a gramática normativa, ou, se
 você preferir, exatamente como se verifica na linguagem
 oral em Portugal.

 Em Lisboa e em Belém, é muito comum ouvir "Foste lá?",
 "Fizeste o que pedi?", "Trouxeste o livro?", "Queres
 água?", "Sabes onde fica a rua?".

 Inevitável lembrar uma canção de uma dupla da terra,
 Paulo André e Rui Barata ("Beira de mar, como um resto
 de sol no mar, como a brisa na preamar, tu te foste de
 mim"). "Tu te foste", diz a letra, certamente escrita
 assim pelo letrista Rui Barata, exatamente como dizem as
 pessoas em Belém. A cantora Fafá de Belém,
 equivocadamente, gravou "fostes".Uma pena!
"Fostes"
 serve para vós: "vós fostes".
O que se ouve em Belém - "foste", "fizeste", "queres" -
não é comum em qualquer região do país. Em boa parte do
Brasil, é freqüente o emprego do pronome "tu" com o
verbo conjugado na terceira pessoa: "Tu fez?", "Tu
sempre faz isso?", "Por que tu não estuda?", "Tu comprou
o remédio?". Para a gramática normativa, isso está
errado. Se o pronome é "tu", o verbo deve ser conjugado
;na segunda pessoa do singular: "fizeste, fazes, estudas,
compraste", nas frases anteriores.
Na linguagem oral, a mistura de pessoas gramaticais
("Você fez o que te pedi?" ou "Tu falou", por exemplo) é
tão comum no Brasil que é impossível não ficar surpreso
quando se vai a Belém e se ouve a segunda
pessoa dosingular como se emprega em Portugal. Aliás, Belém tem
forte e visível influência portuguesa, a começar pela
bela arquitetura.
Ainda segundo a gramática - e segundo o uso lusitano,
vivíssimo -, quando se usa "tu", não se usa "lhe". E aí a roda pega, até em Belém
onde, apesar dos verbos e do
sujeito na segunda pessoa, às vezes se ouve o pronome
lhe": "Foste lá? Eu lhe disse que devias ir". Qual é o
problema? O pronome "lhe" se usa para "você", "senhor",
"senhora", "Excelência", ou qualquer outro pronome de
terceira pessoa. Na língua formal, "tu" e "lhe" não
combinam. Na frase anterior, o "lhe" deveria ser
substituído por "te": "Foste lá? Eu te disse que devias;ir".
E mais: como já expliqueiem colunas anteriores, para a
gramática normativa, o pronome "lhe" não deve ser
empregado com verbos que não pedem a preposição "a". Com
o verbo "dizer", que pede a preposição "a" (dizer a
alguém), tudo bem: "Você foi lá? O que ele lhe disse?".
Mas com "admirar", "procurar", "abraçar", que não pedem
a preposição "a" (admirar alguém, procurar alguém,
abraçar alguém), nem pensar em "lhe" na língua culta:
"Todos admiram você/Todos o admiram"; "Todos procuram
você/Todos o procuram"; "Ela abraçou você/Ela o
abraçou"
Não custa repetir que todas essas observações têm como
base a gramática normativa, que, na linguagem oral, ou
seja, na fala, como se vê, não é aplicada integralmente
em nenhum canto do Brasil. O que fazer? Nadade
histeria. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Nada de
imaginar que se deva exigir de todo brasileiro, na fala,
o cumprimento irrestrito das normas lusitanas de
uniformidade de tratamento.
E nada de achar que não se deve ensinar isso nas
escolas, que não se deve tocar no assunto. Afinal, a
uniformidade de tratamento está nos clássicos
brasileiros e portugueses, está na língua viva, oral de
Portugal e de outros países de língua portuguesa. Está
até na poesia brasileira deste século. E também na
música popular da Bossa Nova ("Apelo", de Baden e
Vinicius, por exemplo: "Meu amor, não vás embora, vê a
vida como chora, vê que triste esta canção; eu te peço:
não te ausentes, pois a dor que agora sentes...") a
ChicoBuarque ("Acho que estás te fazendo de tonta, te
dei meus olhos pra tomares conta, me conta agora como
hei de partir" versos de "Eu Te Amo", música de Tom
Jobim e letra de Chico Buarque).
Não custa repetir: na língua culta, formal, é desejável
a uniformidade de tratamento. Quando se usa tu, usam-se
os pronomes te, ti, contigo, teu. Quando se usa você,
senhor, Excelência, usam-se os pronomes o, a, lhe, seu.
E também não custa pesquisar um pouco, ler os clássicos
e os modernos. Ou fazer uma bela viagem a Belém e lá
tomar o tacacá. E ouvir algo como "Fizeste o trabalho?".

Um beijo, Belém.